Sábado, Fevereiro 3

Sábado, Fevereiro 3

Sugestões de leitura

Concerto Jovens e Artistas pelo Sim em directo

Terrakota, Mário Laginha, Maria João, Camané, Zé Pedro dos Xutos, Pacman dos Da Weasel, Vera Cruz, Cool Hipnoise, JP Simões, Micro Audio Waves, Vera Mantero e Pedro Pinto, sobem ao palco, este Sábado, 3 de Fevereiro, desde as 21 horas, no Fórum Lisboa, em mais uma iniciativa pelo Sim à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. A transmissão em directo, para todo o mundo, aqui.
Lugar ainda às intervenções de Cleia Almeida, José Luís Peixoto, Margarida Cardeal, Miguel Melo, Sandra Celas, entre outros, e ainda, filmes de artistas pelo Sim.

Ler mais...

Se o Sim ganhar?, perguntam eles. E o Não quando ganhou, como foi? Pois.

O Não ganhou em 1998. O que mudou? Nada. Mas não prometia o Não de então, que as coisas mudariam, como prometem hoje? Prometiam. O que mudou? Nada. As mulheres continuaram a abortar clandestinamente, a morrer e a esvaírem-se em sangue nas urgências dos hospitais quando o citotec e outros falhavam no vão de escada da parteira que sabia fazer o desmancho ou na casa de banho de casa. Afinal, o Não ganhou, mas nada mudou. Afinal, o aborto continua liberalizado (já é!), livre das 0 semanas aos 9 meses, feito quando e como se quer, em estabelecimentos não autorizados. O Sim quer tentar mudar, seriamente, estas coisas, que continuam desde que o Não ganhou em 1998. O Sim quer eliminar o aborto clandestino, a morte desnecessária, tornar o aborto raro, mas seguro. O Sim quer mudar o que o Não já provou não mudar. O Sim quer acabar com a criminalização, despenalizando a mulher, que o Não continua a criminalizar e penalizar (há mulheres condenadas neste país, mas eles gostam de fingir que não!). O Sim quer antecipar uma outra capacidade de resposta à mulher, permitindo que em vez da amiga ou do oportunista, seja um médico a aconselhá-la, evitando se necessário o aborto, que seria sempre clandestino. O Não ganhou em 1998, está na hora de mudar de práticas, de política, de lei. O Sim é essa mudança. O Não é perpetuar o que já se provou estar errado.

Coisas que só não entram em cabeças muito duras

"Na barriga da mulher grávida não está nenhuma criança. Ela está na tua cabeça. Ou na cabeça da mãe. Se está na cabeça da mãe, ela está na barriga, existe mesmo de verdade, merece todo o amor e protecção. Mas se só está na tua cabeça, e não na dela, não está na barriga da mãe. É verdade, o que temos na nossa cabeça existe mesmo, é real. Mas não tens o direito de plantar as criaturas da tua cabeça na barriga duma mulher sem o seu consentimento."

Lutz Brückelmann, no QeP , referindo-se ao embrião com menos de dez semanas e à insistência de alguns em pedomorfizá-lo.

VOTAR SIM

Na sala de espera da clínica uma menina de quinze anos entretém-se a olhar para os ténis de marca enquanto a mãe relê a folha onde deve expressar o seu consentimento. Tem que assinar; parece que é o melhor para todos, ela é ainda tão pequenina, que chatice, que fizemos mal, e olha em redor, como comparando-se, buscando a equivalência na dor. Em frente delas está sentado um casal de trinta e tantos, cansado, triste e com vontade de que a vida fuja dos hospitais, das análises, dos diagnósticos injustos. E também vê uma senhora sozinha, com pasta, fato e ar de muitas reuniões à semana e uma cigana velha que arrasta uma barriga adolescente. E uma enfermeira que entra e sai enumerando nomes que trazem fetos. Na sala de espera da clínica especializada em abortos do centro de Madrid não há uma única alma que esteja confortável, apesar da cor neutra das paredes e das revistas do coração que sobram porque ninguém está lá para saber da vida dos outros. Naquela sala não vê uma mulher feliz, sossegada, nem nenhuma que pareça uma assassina em série que mereça ser julgada por um referendo popular. Só mulheres que precisam abortar.
(início do texto publicado na edição de Dezembro da Revista Atlântico)

the marcelo way... and the hard way

bom. para começar, quero dizer que esta troca de mimos entre mim e o professor marcelo vai ter de chegar ao fim (ia escrever SIM, vejam lá), sob pena de a minha tia avó hermengarda, da província mais profunda, me riscar do testamento sem mais delongas. já me mandou um bilhetinho aziago:



portanto, senhor professor, faça-me o enorme favor de não insistir mais em ligar o meu nome à liberalização do aborto até aos oito meses que o senhor advoga, ao aborto de qualquer maneira e em qualquer lugar, feito sabe-se lá por quem e porquê. eu, senhor professor, defendo a despenalização -- veja se consegue reter esta palavra, des-pe-na-li-za-ção, aconselho-o a ir ver ao dicionário, quer dizer "retirar a pena de", ou seja, deixar de ameaçar com pena de prisão -- da interrupção da gravidez até às dez semanas, e só se feita num estabelecimento de saúde legalmente autorizado, por técnicos de saúde credenciados, e, não esquecer, por opção da mulher.


e por opção da mulher porquê, senhor professor?

pois é, senhor professor, custa-me muito ter de lhe explicar isto a si, um tão eminente professor de leis, mas se a pergunta do referendo não especificasse que a interrupção da gravidez só será despenalizada nas condições descritas acima SE for por opção da mulher então os abortos efectuados sem consentimento da dita passariam a ser despenalizados também.

custa-me a crer, professor, como à minha tia hermengarda, que o senhor professor defenda que o aborto pudesse ser despenalizado nos casos em que fosse feito contra a opção da mulher -- quando por exemplo um sacripanta, como diz a minha tia que era o meu tio, não quer ter um filho e dá uma carolada na mulher, a leva para um tugúrio qualquer e paga a um curioso para a fazer abortar, às 10 semanas ou aos oito meses. custa-me muito a crer -- e ao cardeal patriarca também, que eu ouvi a entrevista dele à judite de sousa e ele disse o mesmo, com cara de quem acha que o professor marcelo anda a consumir muita gasosa estragada -- que uma pessoa como o senhor professor defenda coisas tão extraordinárias e ainda por cima tão pouco cristãs.

sobretudo, senhor professor, porque nem nas suas dominicais aulas na rtp nem no chorrilho de vídeos (que mal montados, deus) que anda a desmultiplicar no you tube explicou coisa que se percebesse sobre a sua, digamos, 'proposta'. ora eu, que sendo quem sou não sou destituída de espírito caritativo, venho por este meio dar-lhe uma ajuda (pronto, 'tá bem, para ver se a tia hermengarda não me deserda).

então, senhor professor, venho propor-lhe que este domingo, na rtp, responda a umas singelas perguntinhas que permitirão, de uma vez por todas, desvanecer a fumarada que envolve a sua prestidigitação verbal e entender a sua 'proposta' em todo o seu decerto fulgurante esplendor.

1. o professor marcelo defende que as mulheres possam abortar até aos oito meses sem serem penalizadas? sim ou não?

2. o professor marcelo defende que esses abortos possam ser feitos contra a opção da mulher e mesmo assim não se aplicar qualquer pena?

3. o professor marcelo defende que esses abortos possam ser feitos em quaisquer condições, em qualquer sítio e por qualquer sorte de pessoas, sem que por isso haja pena?

4. ou o professor marcelo defende que em caso de aborto efectuado em quaisquer condições e em qualquer sítio, por qualquer tipo de pessoas e até aos oito meses de gestação, só a mulher seja despenalizada (caso sobreviva), e todos os outros intervenientes sejam penalizados?

5. o professor marcelo é contra a despenalização proposta na pergunta referendária porque assegura um prazo curto, porque assegura condições de segurança, saúde e de transparência, e porque assegura que o aborto não será efectuado contra a vontade da mulher?

6. o professor marcelo é contra a despenalização porque acha que é duro exigir às mulheres que abortem só até às 10 semanas em estabelecimento de saúde autorizado e por sua opção?

7. o professor marcelo espera mesmo que o levem a sério com estes argumentos?

pois é, professor. acredite que estou deveras condoída por ter o questionar desta forma abrupta e hard, mas está em causa a herança que a tia hermengarda me prometeu -- tenho de provar à minha tia que seu NÃO e o meu SIM são de facto muito muito diferentes. e que eu, ao contrário do professor marcelo, vejo com verdadeiro horror a possibilidade de manter tudo como está, de continuar o aborto liberalizado à vontade de quem quiser e como quiser e onde quiser, às 10 semanas ou aos oito meses, sem hipótese de sabermos o que se passa realmente nem de tentarmos perceber o que leva as mulheres a abortar e de tentarmos que não abortem (se nos for possível encontrar soluções caso a caso) ou que não voltem a abortar.

chame-me dura, professor, mas eu quero uma lei que se possa impor e cumprir. eu quero regulação, honestidade e transparência. para moleza e irresponsabilidade já tivemos 23 anos.

Ler mais...

Do fundo da gaveta

De vez em quando saem cá para fora, com camadas de poeira e bafio machista, as opiniões mais abstrusas que ainda é possível imaginar – as mil metamorfoses das razões do Não. Agora é Gonçalo Reis – na qualidade de administrador da RTP – que assina o artigo de opinião (no Público de hoje) acerca do omissão do papel do pai, em caso de IVG:

«E o pai, ausente desta escolha, se ganhasse o "sim"? E se a mãe quiser abortar e o pai não? E vice-versa? O pai é tanto pai como a mãe é mãe. Que raio de conceito de família subjaz a esta transferência total de responsabilidade, a esta opção pelo unilateral? Que horror de mundo, a sós, sem ponderação partilhada, sem diálogo, pretende o "sim" oferecer?»

Ora, todos sabemos que há realmente uma desigualdade biológica e definitiva: só a mulher engravida. Essa desigualdade implica por vezes grandes sacrifícios, tanto para ter como para não ter a criança. Tudo se passa dentro da mulher, à custa de sentimentos e dores que nenhum homem pode senão imaginar. Sem prejuízo dos aconselhamentos, das negociações ou do entendimento do casal – quando exista casal - cabe-lhe só a ela ter a decisão final.

Mas, do outro lado, as femininas vozes do Não (Assunção Cristas, também no Público de hoje) lembram que muitas mulheres são obrigadas a abortar por pressão dos homens – companheiros, patrões – e que a legalização só vai tornar essa pressão mais fácil. Que há pressões masculinas há, mas não apenas (como julga Laurinda Alves) nas classes menos educadas. Que essas pressões são terríveis sobre uma mulher que por estar grávida se sente muito mais fragilizada – é certo. E que, igualmente, «a desresponsabilização masculina, nesta matéria, é ancestral», di-lo José Manuel Pureza, pelo Sim (hoje no Público).

Esquecem-se - ou evitam ver - que numa situação de extrema fragilidade como é da decisão de IVG, uma mulher não aconselhada, não apoiada, não protegida na sua saúde íntima – mais sofre e mais facilmente é pressionada. É isto que a nova lei vai combater, apoiando as mulheres e permitindo-lhes escolher sem pressões, sem ameaças, sem medos, sem sanções.

Pressão igualmente medonha será que ela seja obrigada pelo homem a ter o filho à força. Ora, é isso que todos os adeptos do Não se julgam no direito de impôr a toda e qualquer mulher.

Em ambos os casos, estas opiniões revelam um desrespeito profundo pela autonomia feminina, pela sua maioridade civil, pela sua responsabilidade integral, como se elas não soubessem o que fazem. Estas vozes continuam a querer subordinar a mulher à sua biologia, negando-lhe a igualdade de direitos e a liberdade sobre a sua vida. Mas o seu corpo é autónomo. E a sua decisão soberana, em qualquer circunstância.

Ler mais...

Coisas Simples

O tecnicismo, ao contrário do que se pensa, numa discussão geralmente tende a realçar a patetice. Se há um núcleo de patetice, o tecnicismo vai fazê-lo crescer. Como acontece com os cristais. Aliás, o núcleo de patetice é em regra uma ideia cristalizada. Um notável exemplo deste fenómeno observa-se entre os criacionistas, na forma como redescobrem as leis da genética nas Sagradas Escrituras (criacionismo duro) e no modo como se deleitam com artifícios técnicos e sofismos disparatados (os adeptos do "Intelligent Design").

Nos dias que correm, é impossível não estabelecer um paralelo entre os criacionistas e alguma da nossa gente de leis. Mas como nesta casa o Miguel Abrantes não tem dado tréguas (ver o seu recente post sobre a epifania de Bagão Félix), optei por discutir um outro exemplo: o cálculo da probabilidade de se ter uma gravidez indesejada . Entremos num universo fascinante.

Este cálculo parte sempre de uma de duas ideias antagónicas: vou demonstrar que a gravidez indesejada só ocorre por desleixo ou vou demonstrar que pode ocorrer mesmo quando se tomam precauções. A falácia de ambas as abordagens é que pouco adianta chegar a um número. O que sabemos é de uma trivialidade avassaladora. Sabemos que a única forma 100% segura de evitar uma gravidez indesejada é ter sexo apenas quando se procura uma gravidez, ter práticas sexuais que evitem a penetração ou não ter sexo. E sabemos que se não se usar um método anticonceptivo a probabilidade de enfrentar uma gravidez indesejada aumenta, admitindo que não se deseja engravidar ou que se deseja engravidar mas de outra pessoa (estou a tentar lembrar-me de toda a gente). Isto deveria bastar para orientarmos o nosso comportamento e, eventualmente, para debater a responsabilidade individual, porque é sempre aí que se pretende ir. Mas não chega, é preciso apresentar o número mágico da probabilidade da gravidez indesejada, a prova estatística da integridade moral de uns e da incúria de outros.

Se o ridículo desta empreitada ainda não salta à vista, os autores não deixam os seus créditos por mãos alheias e tratam de o frisar através de cálculos absurdos. A equação impossível que procuram entra com a frequência das relações sexuais, a fertilildade do homem, a fertilidade da mulher, a falibilidade do método (a existir) que o homem usa, a falibilidade do método (a existir) que a mulher usa, um factor que pondera a habilidade do homem no uso do método (importante para os preservativos e crucial para métodos mais tradicionais), outro que pondera as distracções (toleráveis) da mulher no uso da pílula, a regularidade da mulher (importante para os métodos tradicionais), as fases da lua, os eclipses, a frequência de serões em que se chegou a casa com os copos (mas só para dias de baptizados e casamentos), etc. Como me dizia um amigo, geralmente basta saber somar e multiplicar, mas também se pode também arranjar um integral (um tratamento mais sofisticado) para cozinhar estes números. À dificuldade de estimar estes parâmetros, junta-se depois a irritante complexidade da realidade. Por exemplo, considera-se que os parâmetros são independentes, mas alguns podem variar em função de outros, nomeadamente em função da frequência das relações sexuais. A equação, que já não era simples, complica-se um pouco.

Não vale a pena elaborar mais. Há variadíssimos cálculos disponíveis por aí, uns mais criativos, outros mais imbecis. É só procurar. Quem busca estes números tem sentido de humor. Mas também há quem os procure movido pela sua desconfiança, a sua insegurança ou o seu desejo de policiar o quarto do vizinho. Estas pessoas desconfiam dos inquéritos, desconfiam do futuro, desconfiam de toda a gente. Isto trata-se, mas até lá proponho que deixemos a matemática fora da equação e que recentremos o problema.

Imagem: estudo sobre o número máximo de preservativos que é possível aplicar ao mesmo tempo num único indivíduo. Esta solução é fortemente desaconselhada por todas as marcas reputadas.

Ler mais...

Coisas simples

Há três equívocos primários que alimentam a indignação dos homens perante a possibilidade de virem a perder o poder de veto sobre as decisões da mulher grávida. O primeiro: pensar que na reprodução a biologia respeitou a paridade. A contribuição do homem esvai-se uns momentos antes, geralmente sem grande desprazer. A seguir, isto é, durante as primeiras semanas da gravidez, o seu papel é essencialmente honorário e, para os mais cooperantes e zelosos, secundário. É pois uma questão de mera justiça que os direitos da mulher prevaleçam na hora de tomar uma decisão. Como sucede com todos os mamíferos, o cuidado parental - em sentido lato - está totalmente desequilibrado durante a gravidez e não há forma de o corrigir.

O segundo equívoco percebe-se melhor analisando todas as combinações possíveis de desejos no casal quando o homem não é pelo "Sim" (para os outros homens presume-se que esta prosa é mera perda de tempo). Na verdade só há dois cenários possíveis: ou ambos concordam em continuar a gravidez ou a mulher não a quer, indo contra as pretensões do homem. Ou seja, estamos a discutir se é importante proteger o direito de um homem a ser pai de uma criança filha de uma mulher que não a quer ou não o quer a ele para pai de um filho seu. Convenhamos que no projecto de vida que idealizou, o homem não está a ser particularmente ambicioso.

Sobra um terceiro equívoco: o tal poder de veto é ilusório, nunca existiu. Uma mulher, até às dez semanas de gravidez, tudo controla. Cabe-lhe nomeadamente a decisão de partilhar ou não com o homem a notícia de que engravidou. É claro que os homens são livres de pensar - a posteriori - o que bem entenderem de quem lhes oculta um facto desta importância e, em função de cada caso, será até natural ter por eles alguma simpatia, mas não se vê como uma mudança da lei possa ter impacto na ordem natural das coisas. Recentremo-nos.


"Voto SIM, porque não posso aceitar que uma mulher tenha que recorrer a um aborto clandestino e inseguro, que põe em a sua saúde e a sua vida." Marta Crawford

Aborto, uma polémica de sempre

«Um bebé não é um problema metafísico» foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que «não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos» (DN, 20-01-2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo.
Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto.

Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio: (premissa a) o feto é, em potência, um ser humano; (premissa b) todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; (conclusão): o feto tem direito à vida. Daí se infere que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é atentatória desse direito, logo, um crime, um crime parente próximo do homicídio.


É esta, aliás, a posição oficial da Igreja católica, que classifica o aborto como um dos pecados sujeitos a excomunhão (e isto apesar de algumas vozes discordantes, como a do padre Anselmo Borges, teólogo e professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que propõe a distinção entre vida, vida humana e pessoa humana): «A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio (...)» (João Paulo II, Enc. Evangelium Vitae, 25/03/1995, n. 58); e ainda: «Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que "quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae", isto é, automática» (idem, n. 62). Mas, a não ser que se faça da vida humana uma leitura religiosa – e essa é uma posição legítima embora, obviamente, impossível de sujeitar a referendo – a argumentação atrás exposta, contrária à IVG, não parece defensável. Porque se o que falta provar é, precisamente, que todos os seres humanos em potência têm direito à vida, não se pode, ao mesmo tempo, afirmá-lo como premissa sem incorrer em falácia. O filósofo Pedro Madeira vai mais longe. Em «Argumentos sobre o Aborto» ( http://www.criticanarede.com/) acrescenta: «(...) é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas».

Do lado do Sim, insiste-se nas condições sócio-económicas das mulheres desfavorecidas e na realidade dos números, apesar da lei proibitiva. São razões fracas, que pecam por circularidade. Porque do facto dos cidadãos carenciados terem menos condições para contratar um assassino não resulta que o Estado deva disponibilizar um serviço grátis de gangsteres ao domicílio. Assim como do facto de existirem ladrões, apesar da lei proibitiva, não se infere que o roubo deva ser legalizado. Note-se que esta contestação aos argumentos do Sim, não implica uma equivalência moral dos exemplos. Apenas se pretende mostrar que, nos casos expostos, a sustentabilidade da argumentação é difícil, se não impossível.

Nada disto é novo. O aborto nunca foi um facto pacífico. No Ocidente, durante a Antiguidade, a sua regulamentação, regra geral, apenas tinha em conta os interesses masculinos e, consequentemente, só era punível quando estes eram lesados: «Estigmatizado como sinal de decadência dos costumes ou visto como atentado à ordem familiar e social, o aborto é considerado uma manifestação de inaceitável autonomia feminina» (in História do Aborto, Giulia Galeotti, Edições 70, 2007). Pelo menos até ao século XVIII, o aborto é encarado como um assunto de mulheres. Rodeado de insondáveis mistérios, à semelhança de tudo quanto dizia respeito ao segundo sexo: não por acaso, durante o longo período da «caça às bruxas», que vai do século XIV ao XVII, uma das acusações mais recorrentes é a das práticas abortivas.

Com o cristianismo a impor-se como religião do Estado, o aborto ganhará o estatuto de «crime abominável», um pecado que atenta contra a acção criadora de Deus, destruindo uma criatura que Lhe pertence. Apesar deste princípio geral, a posição sobre o momento em que o feto passa plenamente a pessoa não será unânime. Embora contrário ao aborto, é Santo Agostinho quem avança com a posição mais tolerante, alicerçada na teoria da animação diferida, que faz atrasar o aparecimento da alma em relação ao momento da concepção: «não é homicida quem provoca o aborto antes da infusão da alma no corpo», sugerindo-se que esta surge nos rapazes aos 40 dias e nas raparigas aos 80. A polémica atravessará séculos: em 1558, o Papa Sisto V publica a bula Effraenatam, que condena à excomunhão todos os que provocarem o aborto, sem fazer distinção entre feto animado ou não animado. Em 1591, Gregório XIV retoma a posição agostiniana. Em 1679, Inocêncio XI vem reafirmar que o nascituro é pessoa desde o momento da concepção… Como se vê, a discussão sobre o estatuto do zigoto, do embrião e do feto (embora sob outros nomes) é coisa antiga.

A ciência acabaria por ser chamada à colação, na medida exacta em que se interessa cada vez mais pelos segredos da vida intra-uterina. Quando, em 1762, Charles Bonnet propõe, em defesa do preformismo, que qualquer organismo já contém em si os futuros seres pré-formados a que dará origem, o naturalista suíço crê estar, não só a contribuir para o avanço da ciência como a confirmar a Génese bíblica. De acordo com o preformismo, desde o momento da concepção, ou o espermatozóide transporta em si um «homunculus», (animaculismo), ou este já está contido no óvulo (ovismo). A polémica entre preformismo e epigénese – hipótese proposta em 1759 pelo embriologista alemão Kaspar Friedrich Wolff, que, ao invés de Bonnet, defendia que as novas estruturas se iam formando progressivamente – foi um dos debates intelectuais mais acesos do século XVIII, só resolvido com a teoria celular, já no século seguinte.

Para todos os efeitos, é interessante sublinhar que então, como agora, as posições contrárias ao aborto, mesmo quando assentes em princípios religiosos mais ou menos assumidos, nunca deixaram de tentar credibilizar-se através da ciência. Vejam-se, por exemplo, as declarações actuais de Nuno Vieira, da Plataforma Não Obrigada, um dos muitos portugueses católicos que responderam à chamada do bispo de Leiria para ir a Fátima «celebrar a vida», esclarecendo que o movimento a que pertence está ááempenhado em dotar a sua campanha de «dados científicos», procurando utilizar uma «linguagem moderada e esclarecedora».

Se a religião sempre se pronunciou sobre o aborto, e também a ciência viria a intervir no debate, caberá ao Estado e ao Direito legislar sobre o tema. Aquilo a que alguns autores, nomeadamente Elisabeth Badinter, chamaram «a invenção da maternidade», ideia romântica que começa a propagar-se em finais do século XVIII e ááque desenha uma mulher plenamente realizada no seu papel de mãe, toda ela bondade e sentimentalismo, cruzar-se-á com os desígnios do poder político, que, pela primeira vez, irá defender o feto, agora não por motivos de fé mas por razões de Estado. A demografia torna-se ideologia (então, como agora, era necessário fazer aumentar a natalidade), a maternidade é explicitamente regulamentada e o aborto voluntário declarado contrário ao patriotismo nascente. Em 1810, o artigo 317 do Código Penal francês é claro: «Quem provocar aborto de uma mulher grávida com ou sem o seu consentimento (...) é punido com prisão». Em Portugal, o Código Penal de 1886 considera o aborto ilícito em todas as situações e, já no século XX, a tendência mantém-se, embora o Projecto da Parte Especial do Código Penal de 1966, do Prof. Eduardo Correia, previsse, como excepção, o aborto terapêutico (acrescente-se, a título de curiosidade, que a tese apresentada por Álvaro Cunhal em 1940 para o exame de 5º ano da Faculdade de Letras de Lisboa versava o tema: O Aborto - Causas e Soluções, Campo das Letras,1997). O que se verifica, portanto, é que após séculos a tecer, como Penélope, no recato das casas, as mulheres e, consequentemente, a maternidade, ganham uma exposição cada vez maior no espaço público, com todas as consequências daí decorrentes.

A grande alteração ao estado das coisas – tendencialmente repressivo da IVG (em França, por exemplo, em 1942, o aborto é considerado «crime contra o Estado» e sujeito à pena capital – ficará tristemente célebre o caso de Marie-Louise Giraud, guilhotinada a 9 de Junho de 1943 por práticas abortivas) – dar-se-á com a introdução, na década de 70, do argumento que pugna pelo «direito das mulheres ao seu próprio corpo». E, embora hoje em dia, este pareça ser um argumento em desvantagem na discussão, a sua consistente defesa pela filósofa Judith Jarvis Thomson em 1971 continua a ser uma referência inultrapassável (ver A Ética do Aborto, organização e tradução de Pedro Galvão, Dinalivro, 2005).

A grande viragem (mesmo se, já desde 1967, a legislação britânica fosse bastante tolerante na matéria) ocorre em 1970, quando, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal, no caso Roe versus Wade, decide a favor de a mulher poder escolher interromper a gravidez. Segundo Ronald Dworkin, especialista em filosofia do Direito, o que estava então em causa não dizia respeito «ao problema metafísico da pessoa do feto ou teológico da sua alma, mas sim ao problema jurídico de o feto ser ou não ser uma pessoa do ponto de vista constitucional» (in História do Aborto). E se Jane Roe dá hoje voz aos chamados movimentos Pró-vida, a decisão continua a fazer lei, apesar da insistência de George W. Bush em atribuir personalidade jurídica ao feto.

As palavras de Ronald Dworkin poderão, eventualmente, agradar a Paula Teixeira da Cruz. Afinal, colocar a questão do aborto em termos absolutos de vida ou de morte, não parece estar a levar a lugar nenhum, apresentando-se a própria comunidade científica dividida quanto ao assunto. Sendo, contudo, irrecusável, que no debate sobre a IVG, seja ela encarada sob o prisma do Direito ou da Saúde Pública, se introduz um irrecusável problema moral, dificilmente a discussão ética poderá ser varrida para debaixo de tapete.

O caso ocorrido na Irlanda em 1992, que envolveu uma adolescente grávida que ameaçou suicidar-se se não lhe fosse permitido interromper a gravidez, talvez seja exemplo suficiente para percebermos os limites do que está em causa. Sendo a Irlanda, juntamente com Portugal, Polónia e Malta, dos países europeus com legislação mais repressiva na matéria, o Supremo Tribunal irlandês levantaria a interdição da jovem se deslocar ao estrangeiro, e esta pôde abortar em Inglaterra. Ora isto, independentemente da posição de cada um sobre a moralidade do aborto, deixa-nos perante a questão mais radical de todas: como obrigar uma mulher grávida que não quer ser mãe a sê-lo? O que nos conduz a uma segunda pergunta: até onde pode o Estado interferir nas decisões individuais dos seus cidadãos? É que, independentemente de concordarmos ou não com o argumento do «direito ao corpo», independentemente de aceitarmos ou não a existência de um conflito de interesses entre o estatuto da mulher e do feto, e, até independentemente de nos colocarmos de um lado ou de outro, o que é inegável é que a Natureza atribuiu à mulher o poder da maternidade. Enquanto assim for, não há legislação que possa mudar esse facto.



Texto inédito de Cristina Leonardo

Ler mais...

Só as levianas, as fúteis e as coitadinhas abortam?

Um exercício didáctico que a consulta das estatísticas disponíveis permite efectuar diz respeito ao número médio de IVGs efectuados por mulher, calculado multiplicando por 30 e dividindo por mil as IVGs por mil mulheres em idade fértil (dos 15 aos 44 anos) realizadas em países em que esta é legal e com estatísticas de confiança. Por uma questão de uniformidade na comparação, os índices representados reportam a 1996, excepto o indicador espanhol que se refere a 2004.

A extrapolação do que se passa na Europa civilizada, onde se situam os mais baixos índices de aborto do mundo, permite prever que entre um quarto a um pouco mais de metade das portuguesas já interromperam uma gravidez.

Para os que tiverem dificuldade em aceitar este número, relembro que Portugal tem uma das mais baixas taxas de natalidade da Europa e que não há nenhuma razão objectiva para considerar que os portugueses sejam adeptos entusiastas da abstinência, que os contraceptivos sejam mais eficientes cá no burgo, ou que o acesso a planeamento familiar, educação sexual e informação seja mais fácil e generalizado em Portugal em relação ao resto da Europa ou aos restantes países industrializados.

Mesmo que recusem aceitar o que esta extrapolação indica para o nosso país, considerarão os nossos apóstolos do NÃO que são «fracas das ideias», levianas ou fúteis metade das mulheres dos países mais desenvolvidos do mundo? Ou considerá-las-ão apenas inimputáveis os que sustentam o paradoxo de que a IVG por opção da mulher é um crime abominável mas que não devem ser punidas as perpetradoras, frágeis seres sem vontade própria, coitadinhas que cedem à mais leve pressão, cuja galante protecção é apanágio dos paladinos do NÃO?

As mulheres que fantasiam levianas irresponsáveis ou fúteis, aquelas que optam por um útero vazio devido a uma cabeça cheia de festas, sapatos e vestidos, serão certamente as merecedoras das tais « sanções psicológicas» advogadas, quiçá assistirem de cilício e burel a dissertações sobre telemóveis e pastéis de nata debitadas por João César das Neves...

Todas as organizações internacionais reconhecem não ser a criminalização do aborto parâmetro determinante do número de gravidezes interrompidas, apenas da mortalidade e saúde femininas. Assim, quer considerem as portuguesas frágeis seres sem vontade própria quer as efabulem meras rameiras - em ambos os casos sem direito à liberdade do que todos protestam ser o fulcro do aborto, uma questão de consciência - porque razão recusam os adeptos da penalização substituir o flagelo do aborto clandestino por IVGs realizadas em condições dignas e em segurança?

Porque, recentremos, vamos ser auscultados sobre uma questão de Direito, não de moral ou religião. O que vamos igualmente decidir em 11 de Fevereiro é tão só se concedemos à mulher a dignidade que a pessoa humana deveria merecer num país cuja Constituição a consagra no seu artigo primeiro. País que é ainda subscritor da quasi sexagenária Declaração Universal dos Direitos do Homem - que no seu artigo 18º declara como direito fundamental a liberdade de consciência!

Ler mais...

Eu não diria melhor

"E enfim, ilustres adversários dela [despenalização], como o professor Freitas do Amaral, querem agora, peregrinamente, que a lei mantenha a definição do crime mas poupe as mulheres à pena: eis uma proposta que não tem ponta de lógica, que no fundo as desrespeita, como crianças ou coitadas; e que corresponde, bem vistas as coisas, a um desespero de causa."

Manuel de Lucena, na Revista Atlântico deste mês

P.S. - a propósito destas ideias peregrinas vi ontem, num telejornal, Luís Villas-Boas defender que as mulheres que abortam deveriam ser sujeitas a, e cito, "sanções psicológicas" em vez de sanções penais. Sanções psicológicas? hum? Pô-las numa sala durante 24h enquanto vozes infantis recitam textos como os da célebre carta distribuída nos infantários de Setúbal? Será isto uma sanção psicológica? Bem puxo pela cabeça mas não imagino outro tipo de cenário

As vadias, a vítima e Jaime

A rapaziada de blogues de direita, tabernas e outros ajuntamentos de homens para recreação gosta da tese da rameira: são todas umas vadias, querem livre-trânsito para o deboche. Uma variação interessante, mais ao gosto de mulheres com trespassante consciência social, é a tese da virgem: não as vamos deixar à mercê dos apetites masculinos. É a linha de raciocínio de Laurinda Alves. Fica por perceber - assim como quem concede o benefício da dúvida - se é mesmo o que pensam ou se recorrem a um expediente de campanha para não hostilizar as mulheres.

O problema é que a tese da virgem, ao multiplicar a falta de confiança na capacidade de decisão das mulheres, faz de cúmulo de tese da rameira. Não só elas não têm como decidir sobre o que lhes está no ventre, como não tiveram competência para decidir quem esteve antes com elas na cama. Nessa medida, a tese da virgem ainda irrita mais. E tentar perceber como estas virgens mulheres não encalham logo pela manhã numa qualquer dicotomia do quotidiano - torradas: manteiga ou doce de pêssego? - é também uma enorme empreitada.

Mas dando de barato que estas virgens existem - é curioso reparar como Laurinda Alves recicla a imagem da mulher de meios desfavorecidos -, não colhe que a actual lei contra o aborto as proteja. Se elas nada decidem e ficam à mercê dos poderes hipnóticos de um qualquer sedutor do Vale do Ave, é preciso começar a pensar como esta personagem. Notem bem, ignoro quando abandonámos a realidade, se no parágrafo anterior se neste, mas para este homem - Jaime - desconhecer o estatuto legal do aborto não é de lhe tirar o sono. Jaime - vem no guião - é um patife e -uma correcção de última hora - algo parvo ou excessivamente libidinoso, pelo que não usará preservativo nem nenhum dos métodos do católogo da contracepção tradicional. Ela, a virgem, por ser virgem nunca usou e também não lhe ocorre. Confrontado com a gravidez indesejada, Jaime aconselhará o aborto, eventualmente de um modo enfático; a menos que queiramos dar-lhe alguma espessura psicológica, não se vê como Jaime poderá proceder de outro modo. E a nossa ex-virgem, aplicando a mesma regra, obedecerá a Jaime.

Fazendo votos para que a tese da virgem não seja generalizável a outros domínios e na esperança de que, apesar de algumas ameaças, ninguém veja na seguinte pergunta uma dicotomia paralisante, ficamos nisto: condeno a virgem de Jaime a um aborto clandestino ou aumento as hipóteses de que ela vir a fazer um aborto em segurança? Recentremos.