Terça-feira, Janeiro 23

Terça-feira, Janeiro 23

Os X-men

Afinal, parece que a questão que se coloca no referendo, como não nos cansam de referir com o orgulho e a indignação de quem pôs a nu uma suposta conspiração, é dupla: (1) despenalizar todo e qualquer aborto até às dez semanas, sim ou não? ; (2) permitir que, a pedido da mulher, o aborto seja realizado num estabelecimento de saúde com condições técnicas adequadas, sim ou não?

Eduardo Nogueira Pinto apresenta o problema com o exemplo didáctico, bem conseguido e só fortuitamente misógino dos senhores A, B e X. O senhor A vota "não" a ambas, o senhor B vota "sim" a ambas e o senhor X vota "sim" a 1 e "não" a 2. Apresentadas as opções, o Eduardo discute o problema com a argumentação do costume. Muito bem. Ora, o problema das exposições didácticas é que revelam tudo, inclusive os preconceitos do professor. O Eduardo não considerou o senhor Z, para ele seguramente um idiota, mas que aqui reabilito, ainda que na ingrata condição de idiota útil. O senhor Z completa o universo das combinações de respostas possíveis de tipo "não" ou "sim". O senhor Z vota "não" à despenalização, mas vota "sim" a que um aborto a pedido da mulher seja realizado em condições técnicas adequadas. Parece haver aqui um problema de lógica e que Z incorre num raciocínio contraditório. Porquê? Porque a segunda pergunta na verdade não é independente da primeira. Logo, quando se diz que há duas perguntas estamos a fazer uma interpretação abusiva, para ser brando no comentário. No fundo, a dita segunda pergunta é apenas uma qualificação da primeira, aliás, uma ressalva fundamental que nos nega o cenário absurdo de um referendo com o único propósito de acabar com uma lei que não funciona, sem atender aos ganhos possíveis para a sociedade, que é o que interessa discutir. Perante tamanha obsessão com a tese das duas perguntas, só apetece parafrasear: meus caros, há vida para lá do código penal. Afinal, queremos uma sociedade ao serviço das leis ou as leis ao serviço da sociedade? Não introduzir a cláusula "em estabelecimento de saúde legalmente autorizado" seria transportar a hipocrisia vigente para o próprio referendo. Haja bom senso.

E é nesta tecla que também insiste Marcelo no seu já instantaneamente histórico vídeo. Aliás, Marcelo faz muito pior do que o Eduardo. Faz muito pior, em primeiro lugar, porque tem um enorme poder mediático e depois de tantos combates políticos perdidos, ainda pode vir a transformar este Fevereiro num Inverno Marcelista. Mas faz pior, também, porque exagera na manipulação. O Eduardo, que é inteligente e descomprometido, no fundo sabe - e revela-o no desprezo condescendente com que apresenta senhor X - que só podemos ser um senhor A ou um senhor B. Ora, isso é bom, não é mau. Não ignoro a complexidade do problema, as ramificações legais, os cenários, o choque para a consciência das mentes puramente liberais e o diabo a quatro, but at the of the day é esta separação de águas que importa apurar. Não há outra. Mas Marcelo, que é inteligente e comprometido, insiste em se apresentar como um senhor X, uma construção, um X-man, enfim, uma fantasia. Marcelo é um X-man porque sabe que assim pode chegar mais facilmente ao eleitorado indeciso. Marcelo opera por pura estratégia política. Desmontemos pois esta tramóia: o cidadão que não percebe este jogo e depois de ouvir Marcelo vai votar como um senhor A por pensar que era um senhor X, no fundo não passa de um senhor Z. De um idiota útil.

Dúvidas existenciais

Não me consigo deixar de espantar com o alarido do não em torno da questão do embrião. É que transcende o meu raciocínio. E por isso, queria expôr a minha dúvida.
Se a actual lei permite a IVG:

a) até às 12 semanas - riscos de vida e de saúde para a mulher (física e psíquica)
b) até às 16 semanas- gravidez resultante de crime contra a autodeterminação sexual
c) até às 24 semanas - malformações comprovadas do feto

... qual é a razão para uma objecção a que as mulheres possam escolher interromper a gravidez?

É que, seguramente, por uma questão de vida intra-uterina, não é! Quem aceita 24 semanas, aceita 10 por inerência.Se fosse por uma questão de vida ou de prazos, o movimento anti escolha deveria esforçar-se por alterar a lei actual para uma legislação do tipo Nicarágua.

Se não é, o problema está então na escolha e nas mulheres. A consequência lógica de uma objecção desta ordem, ou radica em sexismo ou na ideia de que as mulheres não podem exercer a sua escolha, o que não é muito diferente de sexismo. Neste caso, as alas anti-escolha deveriam sair do armário e dizer também não aos direitos das mulheres.

"As razões do meu sim".

O Pedro Caeiro, do Mar Salgado, escreveu um texto muito sereno e inteligente para justificar o seu voto. Vale a pena lê-lo na totalidade, embora eu tome a liberdade de aqui deixar, apenas, um parágrafo:

Qualquer lei penal que tenha contra si cerca de metade da população (a votação pelos deputados é outro assunto) é uma lei que se destina a não ser aplicada convenientemente. A duvidosa vigência social da norma penal reflecte-se, como a experiência tem tornado claro, nos segmentos do sistema relevantes para a perseguição do aborto: nos operadores de justiça (daí as gigantescas cifras negras), nos jornalistas (daí a virtual inexistência de investigações jornalísticas destinadas a denunciar a prática do crime de aborto por A ou B, que contrasta flagrantemente com outro género de crimes que são, também eles, da esfera da intimidade), e nas pessoas que, regra geral, vêem na denúncia de crimes o cumprimento de um dever cívico.

Do direito à indignação!

Gostaria de iniciar a minha participação aqui (em formato "palavrosa", porque em slogan já o fiz), apresentando algumas das razões do meu Sim. Infelizmente o tempo hoje não dá para muito, o que me leva a adiar tal propósito. Não consigo, contudo, deixar de falar de um texto que me anda a revolver as entranhas desde que o li no sábado passado.
Da autoria de um ginecologista, Dinis da Fonseca de seu nome, saiu um texto publicado no Sol (p.27) que continha verdadeiras pérolas de cretinice . Ok, ok, não é boa educação insultar ninguém, mas uma mulher não é de ferro e o sangue às vezes ferve. Perante afirmações do calibre das que se seguem, não me restava, como já confessei noutro local, outra solução que não fosse apodar o senhor. Tempo para Dinis da Fonseca, by himself (e bold meu):

"(...)Com dois comprimidos, em que o primeiro paralisa a função do corpo amarelo e o outro abre o colo do útero, qualquer mulher aborta em sua casa sem gastar um cêntimo ao contribuinte (para além do preço dos dois comprimidos).(...) Evidente que não sou ingénuo ao ponto de ignorar que a clandestinidade, que, repito, é uma exigência da mulher, vai ser o disfarce para toda a exploração seguinte.(...)".[linkei o texto para o site do Eu Voto Sim porque demora menos tempo a abrir que o Sol]

Clandestinidade é uma exigência da mulher? O senhor estará, com certeza, a confundir clandestinidade com "reserva da intimidade" ou "anonimato"... e daí, se calhar não está mesmo - o que é pena, já que a ignorância até pode ser desculpada -, porque uma leitura atenta, ou nem muito atenta assim, permite concluir que o queestá a defender é isso mesmo, aborto clandestino "Façam-no em casa, há uns comprimiditos baris e baratos. Ah! Mas depois confessem-se, tá bem?". Como é possível? Ele, que invoca os seus 40 anos de prática clínica, deveria saber, melhor que a maioria, que nem só o aborto "instrumental" feito em condições precárias pode provocar graves danos à saúde da mulher. O tão falado citotec -comprimiditos bons e baratos- é, neste momento, responsável por um número imenso de complicações que vão parar às urgências hospitalares. O seu uso em versão domiciliária e clandestina mata! Sim, mata! Vejam-se, a este respeito, as declarações de Luís Graça no Público de domingo " As mortes são raras, mas acontecem: no ano passado uma jovem de 14 anos morreu no seu hospital depois de ter ingerido um número excessivo de comprimidos de misoprostol "

O grupo intermédio

Nós, juristas, somos pródigos em conceptualizar, divergir, doutrinar e contra-doutrinar, pois se há ciência que não é absolutamente exacta é o Direito. Neste referendo, que tudo tem que ver com o Direito, a conceptualização em torno das duas posições expressas possíveis – Sim ou Não, a abstenção é uma não posição, apesar de não ser neutra – tomou conta do palco.
Em 1998, diz-se agora, as posições eram mais «arrumadas», porque o Não tinha e mantinha o seu argumentário, e o Sim era mais espesso e radical do que hoje. Em 2007, temos Sim, Não e os híbridos: o Nim ; assim não, doutra forma talvez; diga-se Não mas suspenda-se o Sim; vote-se Não mas deixe-se lá estar a lei e faz de conta que está tudo bem, Sim?
Na diversidade congregada nesta enorme distância que parece percorrer a linha (torta) entre o Sim e o Não, parece, por vezes, que há consenso: as mulheres não devem ser penalizadas criminalmente pela prática da interrupção voluntária da gravidez. Até pode suceder o absurdo da manutenção do artigo 142.º do Código Penal tal qual está, e suspender a sua aplicação, porque as mulheres não devem ser penalizadas criminalmente pela prática da interupção da gravidez.
Mesmo na esfera das posições híbridas, há diversidade conceptual. Alguns dos que seguem esta linha de pensamento, podem ainda votar Sim (espero que sim). Outros vão preferir abster-se (espero que não). Mas, se entre este grupo intermédio parece encontrado um consenso amplo sobre a não penalização das mulheres que voluntariamente interrompam a gravidez, como votar Não? «Concorda com a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez , se realizada, por opção da mulher nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».
Nesse grupo intermédio, é a interrupção por feminina opção que colide com valores jurídicos mas sobretudo morais. Para responder à feminina opção, o sistema terá de estar dotado de capacidade dialogante e comissiva. Nos dicionários que consulto, género feminino não é sinónimo de irresponsabilidade, leviandade ou precipitação.

o NÃO-sense

by marcelo rebelo de sousa.

como diz o luís, um post só não basta (e eu agora não tenho tempo para mais).

Sim

Após sem sequer pestanejar ter respondido "sim" ao convite, junto-me pelas próximas semanas à malta do Sim no Referendo. O sim no referendo é um sim sensível que no passado muito me fez pestanejar e pensar, tanto - e aqui vai confissão - que em 98 não votei. Desde então, cumulei certezas e indignações; resenhas de hipocrisia, clandestinidade e despotismo patriarcal. Adensou-se uma funda convicção a que se mistura há muito uma boa dose de revolta. Este é dos casos (raros, para ser cínico) em que a mudança de uma lei pode ter implicações sociais imediatas de assinalável envergadura. Para atalhar o prefácio: sim aos abortos seguros, dignos e raros.

Marcelo na Holanda

Maradona,
Portugal transformado numa Holanda, uma das sociedades mais tolerantes do mundo? Qual é o problema? Até me parece bem.

TV Marcelo (isto é uma referência cultural)

Estive a ouvir com a atenção possivel (o background é muito mais interessante) a entrevistinha ao Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa disponibilizada no blogue da Revista Atlântico. O Professor Marcelo parece estar muito preocupado com os perigos civilizacionais da "liberalização" do aborto (está-se em risco de transformar Portugal numa Holanda), que é, segundo o Professor, o objectivo escondido e verdadeiro por trás da pergunta escolhida para este referendo. Confesso que nunca tinha pensado nisso dessa forma. Confesso também que vou continuar sem pensar nisso dessa (ou de outra) forma. Contando que, a partir do dia 11 de Fevereiro, em vez de telefonar àquela senhora de Costas de Cão, se possa recorrer a um hospital e a médicos para abortar (dando assim mais um passo em direcção à barbárie), o Professor Marcelo até pode descobrir quinze Romanholis por trás desta pergunta do referendo, que a mim nem me vai aquecer nem arrefecer.

(ainda mais) Argumentos liberais a favor do SIM

Escreveu Pedro Arroja, embora com intenção distinta:
"
Porque eu acho que não tenho o direito de andar a decidir sobre a intimidade de cada mulher portuguesa e o que lhe está no ventre".
Também eu. Por isso estou contra a criminalização da «
intimidade de cada mulher portuguesa». Repugna-me que o Estado se arrogue o direito de perseguir quem se determina a si mesma acerca de aspectos fulcrais da sua « intimidade». E também julgo que a mulher grávida deve ser a primeira a decidir sobre « o que lhe está no ventre», para usar a curiosa expressão de Pedro Arroja.
São duas excelentes razões para votar Sim.


(Publicado no Blasfémias)

Venha a mim a junta médica

Isto provavelmente interessa a menos de 1% dos leitores, mas na qualidade de exilado profissional praticante estou revoltado inconformado e creio dar voz a um sentimento comum a todos os meus colegas que, por uma razão ou outra, não trabalham em Portugal e estão condenados a não votar num referendo em que o nível de abstenção não tem um peso meramente político. Em privado comentamos que Portugal é, também por isto, uma merda de país. Esta frase resume o problema, mas como em público sou obrigado a ter outra elegância e a elaborar um pouco mais, republico (com modificações):

Estão feridos de incapacidade eleitoral activa relativamente a qualquer acto eleitoral:

a) Os interditos por sentença com trânsito em julgado;

b) Os notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos;

c) Os que estejam privados de direitos políticos, por decisão judicial transitada em julgado.


O texto da Comissão Nacional de Eleições (CNE) prossegue, discriminando restrições específicas para as diferentes eleições mas nada adiantando sobre referendos nacionais (ou locais).

Sobre a capacidade eleitoral activa num referendo nacional (RN), a CNE esclarece: sob a epígrafe "Direito de participação", a lei do RN estatui que podem ser chamados a pronunciar-se directamente através de referendo os cidadãos eleitores recenseados no território nacional e, quando o referendo recaia sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito, os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, regularmente recenseados".

Tive hoje a confirmação que NÃO se pode votar no Consulado para este referendo: "O Tribunal Constitucional (TC) concorda que os portugueses residentes no estrangeiro não votem no referendo sobre o aborto já que não estão sujeitos à lei penal portuguesa, posição também defendida pelo PS e PCP, noticia a agência Lusa. (...) O TC defende também que «esta matéria não tem especificamente a ver com a particular situação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, na sua condição de emigrantes». Acresce ainda que «o problema que o referendo visa decidir tem especial relevância na perspectiva das condições sociais e das instituições de saúde do local em que a gravidez e a maternidade futura se desenrolam».

A minha interpretação:

1. Os juízes do TC nunca estudaram ou trabalharam no estrangeiro.

2. Se uma matéria como a (des)penalização do aborto não diz especificamente respeito a quem está (temporariamente ou não) no estrangeiro, exije-se que só vote neste referendo quem viva em Portugal E esteja entre os 18 anos e a menopausa.

3. Se um cidadão português a viver nos EUA com um visto de trabalho e RESIDÊNCIA OFICIAL EM PORTUGAL é, para efeitos de participação num referendo, tratado ao nível de um criminoso ou alguém notoriamente reconhecido como demente, eu - que com toda a franqueza e cingindo-me ao exemplo que melhor conheço, até enfio a carapuça - não deixo de exigir a minha junta médica. Parece-me muito perigoso para a estabilidade da nação e para as gerações vindouras insistir nesta mania de ter leis que ninguém respeita.

Imagem: O Navio dos Loucos, pintura de Hieronymus Bosch

Tots som una dona

Portugueses de Barcelona pelo Sim.

A suprema incongruência

Agora é que se lembram

Cada vez que se discute a IVG os adeptos do status quo vêm ao terreno pedir a "regulamentação", "modificação" ou "suspensão" da lei em vigor. Freitas do Amaral chegou a afirmar que se deveria manter a lei sem aplicar a pena prevista. Outros insistem que se deveria promover a educação sexual e o planeamento familiar. As formulas são diversas. E, normalmente, muito originais. Mas vão todas dar ao mesmo: justificações para não se alterar uma lei indigna. É caso para perguntar: por que razão nada se fez quando a direita estava no poder?

Caro Tiago,

Como sabes, tenho uma enorme admiração pela tua escrita. Quando escreves sobre Darwin, por exemplo, eu leio disparates só que resolvo não ripostar; a tua graça anestesia-me. Quando deixas transparecer esse teu fervor reprodutivo a anestesia não funciona tão bem. O teu slogan "Make babies not love" é digno de João Morgado. Sou uns anos mais velho do que tu e é possível que não te recordes do episódio que animou o Hemiciclo nos anos oitenta, mas a história vem contada aqui. Não gostaria que por causa destes dias de circo ficasses como o Morgado do século XXI.

Não me interessa explorar a ocasião para puxar até às últimas consequências algumas das tuas frases. Digo-te apenas que esse fervor reprodutivo me comove pouco, pois no abstracto pode também ser interpretado como um simples imperativo religioso que obedece a uma estratégia de expansão demográfica da fé, coisa pouco bonita. Parece-me pois que o slogan que usas tem uma gralha. Pela forma como no Voz do Deserto escreves sobre as tuas crianças, eu só consigo ler make babies and love them. E é também por isso, e não pelos teus sermões encapotados, que continuo a alimentar uma enorme estima por ti, que acumula com a admiração que já tinha pela tua escrita.

Abraço,
"Make babies not love"

Para lá de Badajoz

«Referendo: Parlamento dinamarquês apela ao voto "sim" em Portugal

A eurodeputada socialista Edite Estrela divulgou ontem à noite, durante um debate realizado em Castelo Branco pela despenalização da Interrupção Voluntária de Gravidez (IVG), um apelo ao voto "Sim" em Portugal oriundo do parlamento dinamarquês.

O documento, enviado à presidente da delegação portuguesa do grupo socialista no Parlamento Europeu "por uma colega dinamarquesa" foi definido por Edite Estrela como "um apelo subscrito por todos os partidos com assento no parlamento dinamarquês". (...)

Segundo a eurodeputada do PS o aborto "diminuiu na Dinamarca" desde que aquele país despenalizou a IVG, até às 12 semanas, em 1973. (...)»


Pontos nos ii

A dissertação sobre altos valores antinómicos e outros abstracções (sobre-humanas) vai de vento em popa, sim senhor, mais curiosa que estimulante (perdoe-se-me a impaciência). Acontece que não tira nem põe ao seguinte.

Venha o que vier no próximo dia 11, não será certamente a legitimação social do aborto. Se prevalecer o não, pour cause. Se for o sim, porque ninguém virá a terreiro advogar o aborto, abonar e elogiar a prática, encorajá-la, preconizá-la, em suma: inscrevê-la no espectro das boas (estimáveis, recomendáveis) práticas humanas. Note-se que não sou eu que o digo. Di-lo a experiência dos países em que o aborto foi normalizado com clausulado similar ao que agora é proposto para vigorar em Portugal.

Os dados disponíveis indicam que o desmancho – como lhe chama o povo – permanecerá acantonado no domínio do tolerado, do que não se proclama, comunica, festeja, enaltece, do que envergonha, do que se deplora, carpe, em certo sentido ainda do clandestino. Podemos lastimar e até indignarmo-nos (ou não) que legalização e legitimação social não coincidam, que da primeira não siga a segunda. Pouco importa. O wishfull thinking não faz a realidade.

Escusam pois certos adeptos do não de agitar o papão das galdérias, das vadias, das badalhocas, das libertinas irresponsáveis que, alienadas pela voracidade sexual (ah, sim, que vai por aí muita fantasia de moral pequeno-burguesa atávica nostálgica da menina prendada, recatada, doméstica que nunca existiu), verão no aborto legalizado um meio expedito e sem pena para resolver um contratempo de somenos. Como escusam outros de trazer à liça o putativo incremento do volume de abortos para o qual a legalização concorreria. A sanção moral – auto-sujeita – é mais do que suficiente para conter o anima ectrótico, ou melhor para o desvincular do constrangimento legal.

O que está em causa neste Referendo, então? Um não e um sim. Não, não temos o direito de, enquanto comunidade, perseguir e ameaçar com o cárcere as mulheres que goram a fecundação resolvendo interromper precocemente a gravidez. Sim, temos o dever de proporcionar a essas mulheres as melhores condições de higiene pública possíveis para prevenir que, do aborto realizado, resultem lesões e males às vezes irreversíveis. A morte é a morte. A esterilidade é a esterilidade. O cancro é o cancro. É isso que de facto acontece a mulheres que abortam em vãos de escada. É a Vida dessas vidas que a nossa humanidade comum impõe defender. Não a vida como valor supremo, desencarnado, ficção possessiva, ideia enrolada que em tantos casos terá como prazo de validade a data do Referendo.

Vê-se bem que MARCELO REBELO DE SOUSA é professor de Direito: até para compreender o voto dele é preciso um MANUAL.


Não percebe o que o professor Marcelo anda por aí a dizer sobre este referendo? Deixe lá, o resto da humanidade também não. A partir de hoje, é isso mesmo que eu vou tentar decifrar e esclarecer aqui, numa nova e trabalhosa rubrica entitulada:


A Escolha de Marcelo
(Ninguém Sabe Qual É)



Porque é que não faço isso num só post? Porque ninguém consegue, leitor. A começar por ele.

auto-determinação e igualdade: escolhas

De acordo com o quadro legal vigente, as mulheres só podem abortar se a sua situação se enquadrar nas excepções previstas pela lei. Mas esta situação obriga estas mulheres a obterem um consentimento (a "verificação das circunstâncias") sob a forma de atestado médico. E assim, onde fica a sua auto-determinação, o direito a escolher os projectos que querem para as suas vidas? Nas mãos de um médico que decide se ela pode decidir. Isto, para não falar sequer de aborto clandestino, para o qual esta lei injusta empurra as mulheres, desinteressando-se do que lhes possa acontecer - a não ser para as julgar...

A gravidez está pois fora da sua escolha, porque não têm o direito legal de a poderem terminar. Votar sim no próximo referendo significa apoiar o direito de o fazer até às 10 semanas de gravidez. O direito de se escolher o que se pode e o que se quer fazer.

Votar no não, é permitir, pelo contrário, a continuidade desta situação. Possibilita processos como os da Maia, os de Aveiro. E aceitar, que na lei, se mantenha uma pena de prisão até 3 anos, edulcoradas com as promessas de que embriões são já crianças, desde o momento da concepção. E que as mulheres até nem são punidas, apesar da lei (e das evidências dos julgamentos)... E no plano ético, permitir que seja imposta às mulheres uma maternidade não desejada.

É óbvio, que do ponto de vista da igualdade entre os sexos, esta lei é injusta e lesiva dos direitos das mulheres. Esta lei penaliza as mulheres, menoriza-as e assenta numa lógica de julgamento moral, de juízo normativo e condenatório. A imposição da moral de alguns e algumas à vontade de todas e todos. E essa imposição apenas deve merecer uma reacção democrática. Votar no Sim.